06/08/2006
Folha de São Paulo
Ex-favelado corre 65 km, ganha fama, atrai ativistas dos direitos humanos e gera debate sobre os limites do esporte
Filho de um pedinte e de uma doméstica, menino foi vendido por R$ 40 quando tinha 10 meses e tem saúde debilitada por treinamentos.
A biografia é arrebatadora. Um garoto paupérrimo nascido na favela, trocado pela própria mãe por dinheiro, descobre em uma das modalidades mais extenuantes do atletismo seu caminho para o estrelato.
Existe, porém, uma particularidade na história de Budhia Singh. Um dado que fez sua vida ser revirada pela principal entidade de direitos humanos da Índia e agora causa celeuma entre os governantes do país.
A explicação é simples: Budhia tem cinco anos.
Tudo começou no último dia 2 de maio, quando o menino acabou flagrado pelas câmeras da TV durante disputa de uma prova de 65 km. Eventos assim ganham a denominação de ultramaratonas. São procurados por atletas experientes e, na maioria das vezes, veteranos que buscam testar os limites da resistência física. Muitos não chegam ao final do percurso.
Naquele dia, sob 37C, o garoto correu sem parar. Após sete horas, completou todo o itinerário. "É humanamente impossível, é loucura. Adultos costumam completar provas assim em quatro horas. Uma criança não poderia pensar numa coisa dessas", diz Lauter Nogueira, técnico brasileiro de ultramaratonistas.
Não por acaso, o menino despertou curiosidade. "No dia seguinte, todos queriam saber quem ele era. Virou herói nacional e passou a ser convidado para provas de rua", explica Soumygit Tettneiq, jornalista do "Hindustan Times", um dos principais diários da Índia.
Baseado em Bhubaneswar, no Estado de Orissa, Tettneiq descobriu que a nova menina-dos-olhos do país nascera justamente na cidade onde trabalhava. Foi, assim, um dos primeiros a esquadrinharem detalhes de sua trajetória sofrida.
Só que o caso surpreendeu também a Comissão Nacional de Direitos Humanos, órgão respaldado pelas Nações Unidas. A entidade decidiu investigar a rotina do corredor precoce. Desejava saber se os treinos para corridas não debilitavam a saúde do menino. E também abriu procedimento para averiguar a conduta do treinador e tutor de Budhia, Biranchi Das.
Behera Mishra, um dos porta-vozes da comissão, informa que os testes foram realizados no mês passado, sob supervisão do médico Sugata Kar. A conclusão: o ultramaratonista-mirim possui lesões nos pés, pressão alta e um quadro de estresse cardiológico incomum para a idade. "Os resultados são preocupantes e foram encaminhados para o governo do Estado de Orissa. Cabe a eles decidir se Budhia deve seguir correndo ou não", relata Mishra.
A decisão não é simples, pois mexe com tradições do país e encontra importantes focos de resistência. "Soa estranho para um brasileiro, mas, aqui na Índia, muitos atletas costumam manifestar seus talentos ainda na infância. Budhia é um fenômeno. Será que é correto impedi-lo de competir, de fazer o que gosta?", indaga R. K. Kumea, repórter do "Press Trust India", que acompanha os passos do garoto no atletismo.
Ele se refere a casos como o de Parimarjan Negi, 13, que se tornou nesta temporada grande-mestre -graduação máxima do xadrez. É o segundo mais jovem da história a obter o feito. Ou a trajetórias como a do atirador Rajyavardhan Rathore, prata na Olimpíada de Atenas-2004, que pratica a modalidade desde os cinco anos.
Jornalistas como Kumea e Tettneiq, que já entrevistaram Budhia diversas vezes, dizem que o menino jamais reclamou de cansaço. A Comissão Nacional de Direitos Humanos, por outro lado, acredita que um garoto de cinco anos não pode definir sozinho seu futuro.
Budhia nasceu na favela Gautam Nagar. A mãe, Sukanti, trabalhava como doméstica. O pai pedia esmolas nas ruas e carregava o filho nos braços para sensibilizar os abordados.
Quando a criança completou dez meses, Sukanti decidiu utilizá-la como mercadoria. Ela acabara de perder o marido e não tinha dinheiro para sustentar os três filhos -Budhia tem duas irmãs. Decidiu, então, vender o único homem.
Por uma quantia equivalente a R$ 40, entregou seu filho ao dono de uma papelaria. É neste ponto que o técnico Biranchi Das aparece na saga.
Ele é proprietário de uma academia de judô nas cercanias da favela. Biranchi conta que Budhia estava sendo maltratado na nova morada. Decidiu, então, comprá-lo para ensinar os caminhos do esporte.
Sukanti ainda mantém contato com o filho, mas o técnico assumiu as responsabilidades. Biranchi explica que inicialmente encaminhou o pupilo para a prática do judô.
Um dia, Budhia xingou um colega. Como castigo, o treinador mandou-o trotar em volta do ginásio. Esqueceu de mandá-lo parar. Três horas depois, o menino ainda corria. Dali em diante, passou a encorajá-lo na prática de ultramaratonas.
Biranchi não é alvo de investigação apenas pelos danos que pode causar à saúde do menino. Ele negociou alguns contratos de patrocínio. A comissão de direitos humanos acredita que se trata de exploração.
Tudo é negado pelo treinador. Ele diz que a bateria de testes físicos realizada em seu comandado é fraudulenta. Alega que sua academia tem um médico particular, e ele foi proibido de acompanhar o procedimento ao qual Budhia foi submetido. Afirma ainda que o dinheiro dos incentivadores só melhora a vida de seu "atleta".
Por enquanto, o governo de Orissa não bateu o martelo sobre o tema. Apenas incitou organizadores de provas a não convidarem Budhia para competir. A decisão sobre o futuro do ultramaratonista está nas mãos de R.N. Senapati, secretário estadual do departamento de Saúde e Bem-Estar da Família. Por meio de sua assessoria, ele informou que não há data para sair a decisão final do caso.